Leonardo Boff: “Lula não pode tirar esperança do povo” – Publicada em 24/1/2005

Teólogo, escritor e militante que participa do 1º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, entre os dias 21 e 25, em Porto Alegre, Leonardo Boff analisa o governo do presidente Lula e o Fórum Social Mundial. E alerta: “Ou mudamos de prática ou vamos conhecer o destino dos dinossauros”. O catarinense nascido em Concórdia tornou-se um dos teólogos mais conhecidos do fim do século 20 ao enfrentar uma queda-de-braço com a cúpula da Igreja Católica em defesa dos princípios da Teologia da Libertação. Fiel ao que acreditava, recebeu dois castigos de “silêncio obsequioso” pelas autoridades do Vaticano.

Em 1993, ele renunciou às suas funções como padre franciscano para manter seu pensamento engajado e ativo na luta pelos pobres e pela sobrevivência do planeta cada vez mais ameaçado pelos desequilíbrios ambientais, econômicos e éticos. Doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique, Boff é militante engajado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de várias outros movimentos sociais.

Autor de mais de 60 livros, Boff estará em Porto Alegre participando da quinta edição do Fórum Social Mundial. Em entrevista, Boff fala sobre a situação atual da Teologia da Libertação, seus conflitos com o Vaticano, avalia os rumos do governo Lula e lança um desafio para os participantes do Fórum Social Mundial: “Até agora foi o tempo da semeadura. (…) Mas está chegando o tempo da colheita”.

– Qual o papel da Teologia da Libertação na proposta de construção de outro mundo, tal como é preconizada pelos participantes do Fórum Social Mundial? Como a teologia pode contribuir para a construção de alternativas ao atual modelo político-econômico hegemônico no mundo?

– A Teologia da Libertação já nasceu mundializada. Ela colocou no centro de suas reflexões os pobres do mundo, nos vários rostos com que eles se apresentam: os pobres econômicos, os negros, os indígenas, as mulheres, as minorias discriminadas. Por isso, a partir da América Latina, onde surgiu no fim dos anos 60 do século pas sado, ela se difundiu na África, Índia, Coréia, Paquistão e em grupos significativos da Europa e dos Estados Unidos. Isso chamou atenção do Vaticano, que começou a elaborar estratégias de contenção e até de condenação, como em 1984. Éramos muito articulados e de vez em quando organizávamos encontros internacionais de grande monta. Roma conseguiu nos isolar e impedir tais encontros. Só agora, no âmbito do Fórum Social Mundial, fora do controle eclesiástico, pudemos nos reencontrar. Desde o início se tratava de entender que a forma de organização social globalizada pela ordem capitalista e por seu grande instrumento que é o mercado representa a opressão maior que pesa sobre os pobres. Ela deve ser superada mundialmente a partir dos pobres mesmos, feitos sujeitos de sua história quando conscientizados e organizados. A Teologia da Libertação não se entende como palavra primeira, senão como palavra segunda. Primeiro vem a prática dos grupos e dos movimentos de toda ordem, inclusive armados e engajados em processos revolucionários, como na Nicarágua e em El Salvador. A partir desta experiência religiosa e política se fez uma reflexão sistemática que se chamou Teologia da Libertação. A contribuição maior que ela deu e pode dar é fazer com que o cristianismo, presente na cultura e nas bases, deixe de ser fator de legitimação da presente ordem para se transformar em motor de mobilização para a mudança. O cristianismo foi cooptado pelas elites do poder, que o fizeram conservador e até reacionário, quando no seu ideário e na prática de seu fundador, Jesus de Nazaré, sempre foi revolucionário.

– Como está a relação hoje da Teologia da Libertação com o Vaticano e com a linha oficial da Igreja Católica? As tensões e divergências foram superadas ou equacionadas?

– O Vaticano em 1984 e depois em 1986 produziu dois documentos sobre a Teologia da Libertação. Um condenando-a e outro assimilando-a por um processo de espiritualização no quadro da institucionalidade da Igreja. Com esses dois instrumentos enquadrou todos os teólogos, depondo-os de suas cátedras, exilando-os ou simplesmente condenando-os. E se deu por satisfeito e considera que desbaratou a Teologia da Libertação. Ocorre que as questões que fizeram surgir esta teologia continuam e se agravaram. Então esta teologia continua, embora com menos visibilidade social. Por outra parte, a Igreja oficial assumiu grande parte das intuições desta teologia, sem confessá-lo, como a centralidade dos pobres, a dimensão pública e política da fé, a questão da justiça a nível internacional e a compreensão dos direitos, principalmente dos pobres. Esta teologia continua especialmente num nível ecumênico e, por isso, menos sujeita a repressão, especialmente, na leitura popular da Bíblia lida sempre no conpost_content da realidade social brutal em que os pobres vivem. Daí haver resistência, denúncia profética, engajamento político nos sindicatos e nos partidos de raiz popular. Cabe lembrar que uma das pilastras do PT se encontra na Igreja e na Teologia da Libertação. Em razão disso várias figuras importantes do atual governo vêm da Igreja da Libertação e da Teologia da Libertação como Frei Betto, a ministra Marina Silva, os ministros Fritsch, Rosseto, Luiz Dulci, Gilberto Carvalho e outros.

– Qual sua avaliação da atual situação social do Brasil após dois anos de governo Lula?

– Na ótica da libertação, a atual política é insatisfatória, contraditória. O pobre não tem a centralidade prometida. Ele continua objeto de políticas compensatórias e não substantivas e estruturais. O eixo articulador de tudo é a economia de corte capitalista, neoliberal e o que é pior, financeira e especulativa. Esperávamos que um filho da tribulação viesse começar um processo de libertação no sentido de instaurar no centro do poder uma política voltada para as grandes maiorias. Essa ruptura necessária não ocorreu. Por isso somos obrigados a distinguir Lula como pessoa, que seguramente se entende como representante dos oprimidos, e o Lula presidente, neocooptado pelo capital e pelo neoliberalismo que absorveu a ilusão apresentada pelos pontífices deste sistema como verdade e meio eficaz para a redenção do Brasil: superávit primário alto, juros elevados, controle rígido da inflação e a economia voltada para a exportação. Ele, suponho eu, mantém os ideais. Mas escolheu meios e pessoas que, inadequadas a este sonho, antes o tornam cada vez mais distante e até o destroem. O efeito pior que este estilo de ilusão oficial está produzindo no meio do povo é a despolitização, a crença de que a política é enganação mesmo. Por isso já há desilusão e também muita raiva. Se você oferece a estrela vermelha do PT ninguém a quer receber. Lula pode desiludir muita gente mas não pode fazer o povo perder a esperança e frustrá-lo no sonho que ele ajudou a sonhar e a formular politicamente. Mas continuo acreditando no Lula pessoa carismática que o salvará da execração histórica.

– O senhor tem escrito sobre a necessidade de uma nova espiritualidade, que caminhe para uma ética da compaixão e do cuidado, como uma condição de proteção da humanidade. Considerando a atual conjuntura internacional, o senhor acha que estamos caminhando nesta direção ou estamos nos afastando dela?

– A atual situação torna mais urgente a demanda por uma nova espiritualidade e uma ética da compaixão e do cuidado para com a vida. Vivemos tempos de barbárie coletiva como jamais na história, pois mais da metade da humanidade vive em condições de miséria quando teríamos meios econômicos e técnicos de impedir esta tragédia. Mas não o fazemos pela voracidade do capital mundial que se rege estritamente pela competição e não pela cooperação. Vivemos sob um sistema sem coração que sequer se comove diante do desastre no Sudeste da Ásia. Ao invés de perdoar a dívida dos países atingidos, mantém a dívida, apenas protelou os prazos do pagamento (moratória consentida). O mesmo tratamento é feito com a Terra e seus recursos. Ou mudamos de prática ou vamos conhecer o destino dos dinossauros. Quando falo de espiritualidade não penso com categorias religiosas, mas antropológicas e humanísticas. Espiritualidade é uma atitude e uma orientação de vida caracterizada por valores não materiais que dão sentido à vida. Assim, a espiritualidade é construída sobre a sensibilidade para com o outro, a solidariedade, a compaixão, a convivência pacífica com o outro. Sobre tais valores se construíram no passado as culturas e se fizeram os pactos sociais. Hoje não deve ser diferente. Como se depreende, daí se deriva um padrão de comportamento, uma ética mínima que nos permite conviver sem nos devorarmos.

– Qual o caminho, na sua avaliação, que deve ser tomado pelo Fórum Social Mundial? Deve se limitar a trocar experiências e elaborar diagnósticos sobre o atual estado de coisas no mundo ou tem que partir para a elaboração de propostas alternativas concretas e estratégias de ação para torná-las realidade?

– Creio que até agora foi o tempo da semeadura, da elaboração de uma consciência coletiva, de avaliação das forças de que dispomos e de articulação dos grupos construindo redes. Mas está chegando o tempo da colheita. Creio que, talvez não nesse ainda, mas nos próximos fóruns devam ser tiradas medidas concretas, duas ou três, não mais. Eu não saberia quais seriam, pois dependem do nível do consciência alcançado, do consenso mínimo e da capacidade de viabilização mundial. Devem ser coisas que realmente mobilizem multidões e possam encontrar apoio também em gente insatisfeita do próprio sistema. Questão premente que vejo: a falta de água potável em nível mundial que pode levar nos próximos três a cinco anos a crises gravíssimas em muitos países. Por ser um bem escasso, há uma corrida mundial pela privatização da água, que, por ser um bem natural, vital e insubstituível, não seria passível de virar mercadoria. Então: deverão ser feitas manifestações fantásticas contra tais empresas. E urgir um pacto social mundial ao redor da água e impedir que esse recurso entre nos negócios e nos mercados do mundo inteiro. Outra questão é o aquecimento crescente da Terra com conseqüências que se fazem notar no mundo todo e ameaçam a biosfera. Poderá ser feita uma campanha sistemática contra a política do governo norte-americano, que não quer assinar o protocolo de Quioto. Quem sabe boicotar todo tipo de maquinário norte-americano ligado à emissão de carbono na atmosfera? Outro tema é contra a guerra. Não basta ser pela paz. Importa ser contra a guerra, a grande arma que o sistema imperante usa para se impor globalmente. Aqui se deveria de tempos em tempos encher as praças mundiais gritando contra a guerra e pela paz, cercar os quartéis, os aeroportos militares, submeter os militares a um diálogo forçado e permanente. E por aí vai.

Fonte: Jornal do Brasil 24.01.2005

Tonny
Author: Tonny

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