Crise, reforma do Estado e políticas públicas: implicações para a sociedade civil e a profissão
Por IVETE SIMIONATTO
1. Introdução
Os debates e as abordagens sobre a chamada crise eclodida em finais dos anos 70 têm indicado pelo menos duas perspectivas: a primeira centrada fundamentalmente na crise fiscal do Estado e no modo de intervenção deste nos sistemas econômico e social, e a segunda como o "conjunto de transformações econômicas, políticas, sociais, institucionais e culturais" (Mota, 1995:88) que incidem nos processos de produção e reprodução da vida social. Enquanto a segunda centra-se nas conseqüências da crise para os trabalhadores, a primeira materializa-se no ideário econômico e político que defende a ação reguladora do mercado em substituição aos mecanismos de regulação estatal. É nessa perspectiva que se insere o debate sobre direitos sociais e políticas públicas pelos organismos internacionais, reorientando as relações Estado/sociedade/mercado.
2. Banco mundial, Reforma do Estado e Políticas Públicas
A discussão sobre Reforma do Estado e Políticas Públicas precisa ser compreendida no conpost_content da crise global do capitalismo, de sua absorção pelas organizações internacionais e da incidência dessas últimas nas agendas dos Estados nacionais. Os estudos nessa área têm apontado que a influência das 'nações hegemônicas' sobre as chamadas 'nações secundárias' se expressa através de relações de poder coercitivas, que vão desde a ameaça de retaliação e embargos em várias áreas a incentivos econômicos e financeiros. A hegemonia dessas nações tem provocado, especificamente, a alteração das "orientações e valores das elites nacionais, difundindo novas ideias e crenças causais em especial sobre as funções do Estado ou sobre meios e fins da economia" (Costa, 1997:2), para responder à crise do capitalismo neste estágio globalizado.
As principais diretrizes dos organismos internacionais recomendam que a Reforma do Estado seja orientada para o mercado, exigindo o abandono de instrumentos de controle político e a restrição na alocação de recursos públicos, principalmente na área social. As agências de cooperação internacional, especialmente o Banco Mundial, têm articulado uma "aliança tecnocrática transnacional", no sentido de racionalizar os investimentos nessa área, diminuindo o papel do Estado e fortalecendo as ações de natureza privada.
Quais são as principais diretrizes do Banco Mundial? Qual deve ser o papel do Estado? Para essa instituição, "o papel do Estado é fundamental para o processo de desenvolvimento econômico e social, porém não enquanto agente direto do crescimento senão como sócio, elemento catalisador e impulsionador desse processo" (Banco Mundial, 1997:1). O documento sobre o "Desenvolvimento Mundial", do próprio Banco Mundial, indica o crescimento e expansão das funções do Estado, principalmente após a Segunda Guerra Mundial através do Walfare State. Os investimentos na área pública, que historicamente cresceram em vários países, principalmente no âmbito da Seguridade Social, são entendidos, no entanto, como gastos mais quantitativos que qualitativos, não atendendo as necessidades dos segmentos populacionais mais pobres. Afirma, ainda, que esta forma de atuação dos Estados nacionais não condiz com os atuais parâmetros da economia mundial globalizada, pois as mudanças tecnológicas têm ampliado as funções dos mercados e obrigado as nações a assumirem competências novas.
O Banco Mundial apresenta como funções do Estado: a) estabelecimento de um ordenamento jurídico básico; b) manutenção de um conjunto de políticas macroeconômicas; c) investimentos em serviços sociais básicos e infra-estrutura; d) proteção dos grupos vulneráveis; e) defesa do meio ambiente.
Os programas de ajuste estrutural, necessários ao fortalecimento das políticas macroecômicas, são compostos por três elementos básicos: redução dos gastos públicos, realocação de recursos necessários ao aumento de superavites na balança comercial e reformas visando a aumentar a eficiência do sistema econômico. Tais orientações, que se colocam como exigências para a inserção das economias nacionais no processo de globalização capitalista, incidem diretamente sobre as políticas públicas de corte social, na medida em que impõem cortes nos orçamentos e redução do gasto público. O Estado é entendido aqui não mais como o provedor de serviços públicos, mas como promotor e regulador, devendo estabelecer suas funções de acordo com sua capacidade.
O cumprimento dessa programática exige a "complementaridade entre Estado e mercado", ou seja, a iniciativa privada aparece como o novo conteúdo na execução das funções públicas, invertendo as premissas do pacto keynesiano. Nessa ótica, o Banco Mundial expressa a sua concepção de políticas públicas, entendidas como forma de assegurar "que o crescimento seja compartilhado por todos e contribua para reduzir a pobreza e a desigualdade", devendo os governos atribuir prioridade aos "setores sociais fundamentais". Tal orientação fortalece o papel compensatório das políticas públicas, retirando o seu caráter universal, assumindo uma perspectiva focalista, na medida em que visa a atender os segmentos populacionais mais vulneráveis. Essa lógica do Banco Mundial decorre das teses relativas à ineficácia das políticas sociais e da sua incidência nos estratos de maior renda, cabendo aos governos corrigir tais desequilíbrios.
Inclui, também, a participação de provedores privados nas atividades até então reservadas ao setor público, o que tem levado os países a investir em políticas de saúde, educação e assistência aos segmentos mais pauperizados. Invoca aqui o Banco Mundial a necessidade de buscar a participação das empresas, dos trabalhadores, das instituições e dos grupos comunitários para o desenvolvimento das ações públicas. Afirma ainda que "muitos países em desenvolvimento que desejam reduzir a magnitude de seu desmesurado setor estatal devem conceder prioridade máxima à privatização" (Banco Mundial, 1997:7).
No tocante à relação Estado/sociedade, para o Banco Mundial "a eficiência do Estado é maior quando escuta as opiniões do setor empresarial e da cidadania em geral", considerando que essa forma de participação possibilita atender os grupos minoritários e mais pobres, que dificilmente conseguem interferir nas esferas mais altas de poder. Sob o discurso da transparência, afirma a necessidade de processos consultivos, que conferem à sociedade civil, incluindo sindicatos e empresas privadas, a oportunidade de participação e controle das ações governamentais. É nesse bojo que se inscrevem a descentralização e uma concepção de participação centrada no húmus comunitário, o que fortalece as perspectivas localistas que desaguam no individualismo, ou seja, na supremacia do indivíduo sobre a sociedade.
Os mecanismos de participação estão assentados na formação de conselhos deliberativos e comitês populares, a fim de conhecer seus pontos de vista e preferências, estimulando, quando possível, a participação direta dos usuários. Ao mesmo tempo em que se estabelece essa possibilidade de participação na esfera pública, de longa data reivindicada pelos segmentos progressistas da sociedade civil, as orientações alertam, entretanto, sobre a necessidade de imposição de limites nas reivindicações que podem chegar ao Estado pela excessiva influência dos grupos mais agressivos.
Para a eficiência da Reforma, o Banco Mundial (1997:17) indica a assessoria não só dos seus especialistas, mas, também, da Organização Mundial do Comércio (OMC), da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que "podem ajudar os países a suportar o difícil período inicial do processo de reforma, até que comece a produzir resultados". Não aponta, porém, o custo social dessa ajuda, que recai sempre sobre os trabalhadores, através da redução dos direitos sociais e da precarização das condições de vida. O século XXI, diz o Banco Mundial (1997:17), "traz consigo grandes promessas de mudanças e razões para sentirmo-nos esperançosos", alcançando esse patamar somente as nações que incorporarem o programa dos organismos internacionais nas suas agendas locais.
Caberia citar aqui a famosa pergunta de Frederico II, rei da Prússia, em 1778, à Academia de Berlim: "Pode ser útil enganar o povo?". Sendo ele um tirano vulgar, a resposta era, sem dúvida, positiva. Tanto quanto Frederico II, que buscou arrebatar, com seu despotismo, os cérebros pensantes da Europa, assim fazem os organismos internacionais com os países que deles dependem, com sua parolagem sobre esperança e solidariedade em tempos onde a miséria e a desigualdade ocupam espaço crescente na agenda global.
3. A Reforma do Estado no Brasil
As indicações sobre a política do Banco Mundial nos ajudam a situar o que vem ocorrendo, no Brasil, com a Reforma do Estado encaminhada ao Congresso Nacional em agosto de 1995, através da Proposta de Emenda Constitucional nº 173, revista com o substitutivo elaborado pelo deputado Moreira Franco, que contém alterações constitucionais, grande parte já aprovadas e colocadas em prática.
Os pressupostos da Reforma incorporam as diretrizes do Banco Mundial acima elencadas, compreendendo: redução de custos e racionalização do gasto público para assegurar a estabilidade do Plano Real, melhoria da eficiência do aparelho do Estado, descentralização dos serviços, retirando do Estado as atividades que possam ser desenvolvidas por outras instituições. Tais pressupostos aparecem detalhados no Caderno n.1 (1997:7) editado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado — Mare, de autoria do ex-Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, a partir da indicação de quatro componentes básicos: a) a delimitação do tamanho do Estado, reduzindo suas funções através da privatização, terceirização e publicização, que envolve a criação das organizações sociais; b) a redefinição do papel regulador do Estado através da desregulamentação; c) o aumento da governança, ou seja, a recuperação da capacidade financeira e administrativa de implementar decisões políticas tomadas pelo governo através do ajuste fiscal; d) o aumento da governabilidade ou capacidade política do governo de intermediar interesses, garantir legitimidade e governar.
A delimitação do tamanho do Estado é claramente expressa pelas idéias de "privatização, publicização e terceirização", que, segundo Pereira (1997: 14), são essenciais para que o Estado torne-se "mais barato, mais eficiente na realização de suas tarefas, para aliviar o seu custo sobre as empresas nacionais que concorrem internacionalmente". Reproduzindo o discurso do Banco Mundial sobre os efeitos da globalização e a crise mundial dos anos 80 e 90, o ex-ministro indica os novos desafios postos nas agendas dos diferentes governos nos planos social, político, econômico e ideológico. As respostas a essa crise aparecem de forma diferenciada a partir de quatro grupos, assim denominados por Pereira (1997): esquerda tradicional, centro-esquerda pragmática, centro-direita pragmática e direita neoliberal. Ao tecer críticas a todas elas, investe pesadamente nos setores de esquerda, denominando-os de "arcaicos" e "populistas", elegendo a proposta da "centro-esquerda pragmática, social-democrática ou social-liberal" como a que melhor soube diagnosticar a crise, adotando propostas da centro-direita pragmática para promover o ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado, no sentido de "corrigir as distorções provocadas pelo excessivo crescimento do Estado".
Nas palavras de Pereira (1997:17), a centro-esquerda social-liberal ao invés do "Estado mínimo" propôs a "reconstrução do Estado", o que significa: recuperação da poupança pública e superação da crise fiscal; redefinição das formas de intervenção no econômico e no social através da contratação de organizações públicas não-estatais para execução dos serviços de educação, saúde e cultura; e reforma da administração pública com a implantação de uma administração pública gerencial, invocando o princípio da eficiência e das normas da iniciativa privada e da chamada "reengenharia". Afirma, ainda, que a chamada "reconstrução do Estado" encontra-se na agenda de prioridades do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), através da concessão de empréstimos necessários a tão grande façanha.
A aliança de FHC com as elites econômicas arcaicas e patrimonialistas que sempre dominaram na realidade brasileira, é denominada por Bresser Pereira como "uma grande coalizão de centro-esquerda e centro-direita", capaz de conduzir o Estado rumo ao século XXI. A nova categoria aqui utilizada é o Estado Social-Liberal, revestida do enganoso sentido de que é "social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico" e "liberal, porque o fará usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a competição internacional". Os fundamentos dessa matriz de Estado, contudo, indicam claramente a mercantilização dos direitos sociais e não a sua defesa; indicam uma retração do Estado de direito conseguido com a luta das forças democráticas brasileiras; indicam uma instrumentalização dos direitos pela racionalidade econômica; indicam um retrocesso na construção democrática e no exercício da cidadania (Sader, Telles, 1997).
As funções do Estado no Brasil, a partir da Reforma, são assim estabelecidas: a) Núcleo Estratégico — compreende os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e o Ministério Público; b) Atividades Exclusivas — serviços que só o Estado pode realizar, como regulamentar, fiscalizar e fomentar; c) Serviços não-exclusivos — produção de bens e serviços, como escolas, universidades, centros de pesquisa científica e tecnológica, creches, ambulatórios, hospitais, entidades assistenciais, museus, emissoras de rádio e TV educativas e culturais, deslocadas do núcleo exclusivo do Estado e compreendidas como atividades competitivas que podem ser controladas pelo mercado; d) Produção de bens e serviços para o mercado — compreende o segmento produtivo e o mercado financeiro.
É precisamente no núcleo "serviços não-exclusivos" que o governo estabelece as premissas da Reforma do Estado na sua relação com a sociedade e o mercado, a partir dos seguintes objetivos:
– transferir os serviços não-exclusivos para entidades denominadas de
organizações sociais;
– buscar autonomia e flexibilidade na prestação desses serviços;
– buscar a participação da sociedade mediante o controle desses serviços através dos conselhos de administração, com centralidade na figura do cidadão-cliente;
– fortalecer a parceria entre Estado e sociedade através do contrato de gestão.
As Organizações Sociais são "entidades públicas de direito privado que celebram um contrato de gestão com o Estado e assim são financiadas parcial ou mesmo totalmente pelo orçamento público". As dotações do Estado deverão estar previstas na Lei Orçamentária e serem aprovadas pelo Congresso. Administradas através do "contrato de gestão", com metas de desempenho que assegurem a efetividade de seus serviços, as Organizações Sociais possuem as mesmas características do setor privado, sendo elas as instituições que tornarão possível a expansão da ordem privada. Sua extinção pelo não cumprimento das metas estabelecidas ou por outros motivos será de competência do Congresso Nacional.
A propósito, vale lembrar que no Brasil o Executivo tem usurpado a função legislativa, através das Medidas Provisórias, de decisões "pelo alto", transformando o Congresso numa instância burocrática a serviço do poder. Ao submeter o Legislativo a uma lógica que lhe escapa do controle, o governo, segundo Diniz (1997:183), "produz incentivos ao comportamento irresponsável do Congresso, reforçando a tendência populista dos parlamentares (…), estimulando as trocas clientelistas, com o amesquinhamento da prática parlamentar e o aprisionamento do Executivo pela lógica da reciprocidade".
A rede de hospitais Sara Kubitschek é um exemplo de Organização Social que se adapta perfeitamente a essa lógica, recebendo, sozinha, mais recursos do SUS do que 15 unidades da federação, ou seja, os investimentos públicos não recaem sobre os mais pobres, mas dirigem-se às organizações sociais com maior força política e poder de pressão na captação dos recursos públicos. Nessa mesma trilha insere-se a política educacional, que estabelece, segundo as diretrizes do Banco Mundial, a diversificação de fontes de financiamento das instituições públicas, através da inclusão da iniciativa privada e da cobrança de mensalidades, retirando do Estado o dever da garantia da universalidade do ensino. Tais diretrizes fundamentam as propostas apresentadas pelo MEC no que tange às reformas da educação brasileira, entendendo que o campo educativo deve passar às mãos dos "homens de negócio". Surge também nesse conpost_content a revitalização das atividades filantrópicas, não mais desenvolvidas como atividades silenciosas, mas na forma de um negócio e como estratégia de marketing para as grandes empresas.
Considera-se, portanto, que a capacidade do mercado é mais eficiente e efetiva do que o Estado, devendo este centrar-se em programas de proteção social voltados aos mais pobres, conforme recomendações do Banco mundial. Essa retórica neoconservadora de combate à pobreza, patrocinada pelos organismos internacionais e absorvida pelos intelectuais da Reforma no Brasil, remete à "produção de um consenso sobre essas orientações políticas que implicam em restrição dos Estados nacionais e razoáveis perdas para os grupos mais vulneráveis da sociedade. A novidade desse consenso é a sua articulação, como recurso discursivo, à defesa dos pobres ao rotular de inúteis e injustas as estruturas institucionais de proteção social presentes e futuras" (Costa, 1997:16).
A sociedade civil, no tocante à Reforma do Estado, é compreendida como um dos mecanismos institucionais de controle das ações governamentais. O controle social, também denominado de democracia direta, refere-se às formas organizativas formais e informais da sociedade necessárias à fiscalização das organizações públicas e privadas. De acordo com Bresser Pereira (1997), as formas de controle sempre existiram, expressando-se nas sociedades primitivas através do poder hierárquico; nas sociedades pré-capitalistas complexas através do poder patrimonialista; no capitalismo do século XIX através do controle burocrático; e no capitalismo globalizado a tendência é o predomínio de uma combinação de "controle hierárquico gerencial, democracia representativa e democracia direta ou controle social e o mercado". Para a realidade brasileira, sem sombra de dúvida, ainda estamos longe do século XXI, pois nossas formas de controle são próprias das sociedades pré-capitalistas dominadas pelas relações de favor e pelo mandonismo das velhas oligarquias patrimoniais. Bresser Pereira (1997) afirma ser esse o caminho para o fortalecimento da sociedade civil, cuja interlocução não ocorrerá mais com o Estado, mas com as próprias instituições, estando aquele isento das pressões sociais.
São fortalecidas por esta perspectiva as estratégias de desmonte das organizações coletivas, enfeixadas no discurso enganoso sobre a sociedade civil, remetendo-se a esta a responsabilidade no encaminhamento de projetos que dêem conta dos complicadores das novas expressões da "questão social". Nessa ótica, a sociedade civil é deslocada da esfera estatal e atravessada pela racionalidade do mercado, sendo, em última instância, a expressão dos interesses de instituições privadas que controlam o Estado e negam a existência de projetos de classe diferenciados. Tomada em sentido transclassista, é convocada, em nome da cidadania, a realizar parcerias de toda ordem, sendo exemplares os projetos de refilantropização das formas de assistência como o Comunidade Solidária e instituições do gênero (Simionatto, 1997). À direita e à esquerda, entre conservadores e progressistas o discurso sobre o fortalecimento da sociedade civil tem sido apontado como fator fundamental na nova ordem mundial articulada pelo processo de globalização.
O presidente do BID, Enrique Iglesias (Folha de São Paulo, 04/01/97), afirmou, recentemente, que "a globalização exige o fortalecimento da sociedade civil", indicando que "as complexidades da nova sociedade fazem com que você tenha de apelar para essa energia que está na base da sociedade". Mas de que sociedade civil fala o presidente do BID? Para ele, dois elementos são fundamentais: a solidariedade e a auto-estima. E prossegue: "o pobre é por natureza solidário, para sobreviver na pobreza". Ora, tal afirmação remete diretamente à idéia de naturalização da pobreza e da refilantropização da sociedade, liberando da tutela do Estado as demandas desses segmentos subalternizados, que por si só encontrariam na sociedade civil as respostas para suas necessidades. Os pobres que compõem a sociedade civil do presidente do BID, somam, segundo dados do Programa das Nações para o Desenvolvimento (PNUD, 1997), 1,3 bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia, o que revela o agravamento da exclusão de imensos contingentes populacionais.
O sociólogo Ralf Dahrendorf, no seu livro Depois de 1989: Moral, Revolução e sociedade civil, prefaciado por outro sociólogo, o presidente Fernando Henrique Cardoso, escreve que "a democracia só sobreviverá se for baseada em fortes sociedades civis (…) uma sociedade que cria condições para a competitividade e o crescimento econômico" (Folha de São Paulo, 16/11/97). Ou seja, a sociedade civil é composta por aqueles que estão incluídos no mercado e este constitui o ethos da democracia. E quanto aos outros que não têm acesso ao mercado? Ora, os outros contentam-se com a auto-estima e a solidariedade própria dos pobres. Esse é o efeito trágico da globalização, que acentua as desigualdades na mesma medida em que decreta a supremacia dos mercados de forma imperialista.
Essas abordagens expressam, a meu ver, a visão de sociedade civil sob a ótica do capital, como uma esfera à parte que não estabelece uma correlação de forças com o Estado. A rigor, a "sociedade civil" é um conceito tomado indistintamente como expressão exclusiva dos interesses das classes subalternas. Ora, na sociedade civil estão organizados tanto os interesses da classe burguesa, que exerce sua hegemonia através de seus aparelhos "privados", reprodutores de sua ideologia, quanto os interesses das camadas de classes subalternas, que buscam organizar-se para propor alternativas que se contraponham às parcelas minoritárias detentoras do poder, afirmando a prioridade do público sobre o privado, do universal sobre o particular, da vontade coletiva sobre as vontades particulares.
Outro ponto da Reforma do Estado é a reforma administrativa, que compreende a chamada governança. Bresser Pereira (1997) afirma que essa será alcançada quando o Estado tornar-se mais forte, embora menor: "a) mais forte financeiramente, superando a crise fiscal que o abalou nos anos 80; b) mais forte estruturalmente, com uma clara delimitação de sua área de atuação e uma precisa distinção entre o núcleo estratégico onde as decisões são tomadas e suas unidades descentralizadas; c) mais forte estrategicamente, dotado de elites políticas capazes de tomar as decisões políticas e econômicas necessárias; e d) administrativamente forte, contando com uma alta burocracia tecnicamente capaz e motivada". Em outros termos pretende-se um "Estado forte e máximo para o capital" e um "Estado mínimo e débil" para os trabalhadores, o que ilustra de forma paradigmática o receituário dos organismos internacionais.
O alcance da governança está relacionado, ainda, ao ajuste econômico, o que leva o governo brasileiro, seguindo as diretrizes internacionais e, especialmente, as exigências do FMI, a impor cortes nas despesas públicas, principalmente para estados e municípios já espoliados pelo Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e com suas receitas prejudicadas pelos ajustes macroeconômicos. A alta do déficit público é contabilizada no pagamento do funcionalismo público e da previdência social, escamoteando-se que seu crescimento ocorreu, principalmente, com o aumento da dívida pública. O ajuste fiscal deveria, na verdade, incidir sobre as despesas que aumentaram drasticamente o déficit público, como os projetos eleitoreiros do "Brasil em Ação" e "as opções da política econômica do governo que tornaram o país excessivamente vulnerável e exposto, indefeso aos caprichos perversos do mercado financeiro internacional" (Rosa, Folha de São Paulo, 21/10/98).
Fabrica-se, assim, através da grande mídia, o consenso da crise como um fenômeno natural e, portanto, todos precisam hipotecar solidariedade ao governo. Esconde-se, no entanto, a fisiológica solidariedade desse mesmo governo com as elites financeiras que, através do BNDES, as privilegia com empréstimos a taxas de "pai para filho", não excedendo a faixa de 15%, enquanto os agricultores, por exemplo, pagam taxas e juros normais do mercado que atingem mais de 40% (Biondi, Folha de São Paulo, 22/10/98).
Oculta-se, assim, de forma cuidadosa, com o apoio dos meios de comunicação, o fato de que a precária situação das contas públicas não tem sua origem no excesso de investimentos em ações de natureza pública, mas, sobretudo, na incapacidade dos governos em ampliar suas fontes via reformas no sistema tributário, no controle das taxas de evasão e sonegação em larga escala.
A Reforma do Estado envolve, ainda uma reforma política, a fim de garantir a chamada governabilidade. Nesse sentido, embora longo, é extremamente ilustrativo o trecho a seguir, escrito por Bresser Pereira (1997:51): "O grande desafio da Reforma do Estado é ter partidos políticos que correspondam a orientações ideológicas; é desenvolver um sistema eleitoral que permita a formação de governos ao mesmo tempo representativos e com maiorias estáveis; é contar com uma oposição vigorosa mas que lute dentro de um campo comum de interesses; é dispor de uma imprensa livre e responsável que reflita mais a opinião de seus eleitores, ouvintes ou assinantes, do que de seus proprietários ou de seus patrocinadores publicitários; é contar com um sistema judiciário que não apenas faça a justiça entre os cidadãos e os defenda do Estado, mas que também saiba defender a res publica contra a cobiça dos cidadãos poderosos que querem privatizá-la; é contar com uma burocracia que abandone a prática do segredo e administre a coisa pública com total transparência; é contar com um poder legislativo nacional relativamente imune ao clientelismo; é desenvolver sistemas de participação dos cidadãos no controle direto do Estado e das entidades públicas não-estatais; é contar com um sistema mais transparente de financiamento das campanhas eleitorais; é desenvolver, enfim, sistemas de responsabilização dos políticos e da alta burocracia pública". A cobrança desses pressupostos está vinculada, segundo o próprio autor, à necessidade de uma nova cultura política, em que cidadãos, "mais maduros politicamente", tenham condições de cobrar as responsabilidades dos governantes. Essa participação é denominada de democracia direta e conecta-se à de cidadania, ambas perpassadas pelo ideário da "competição e da solidariedade", conforme indicações do Banco Mundial anteriormente citadas.
O estilo de linguagem da utopia neoliberal é simples e universal/abstrato, e muitos conceitos-chave foram capturados da esquerda com os conteúdos essenciais invertidos. Na década de 60, por exemplo, os analistas de esquerda utilizaram a terminologia "mudança estrutural" para significar a "redistribuição de renda, terra e propriedade". As tendências neoliberais utilizam hoje o termo "reforma estrutural", que significa a transferência da propriedade pública para as empresas privadas. A esquerda também utilizou o termo "reforma econômica" para designar as políticas de realocação dos recursos públicos dos setores mais abastados para a área social. O termo "reforma econômica" é utilizado, contemporaneamente, com o sentido de redução dos investimentos sociais e transferência de subsídios públicos aos setores privados (Petras, 1997:20). Tal discurso soa, portanto, como o mais competente para que as massas joguem seu destino nas mãos dos intelectuais do poder, considerados os mais sábios e capazes para resolver os problemas coletivos sem consultar os cidadãos.
A concepção de participação presente na Reforma do Estado está associada mais à uma condição individual do que coletiva, centrada no "cidadão-cliente" e numa "gramática do poder", de caráter prescritivo, destituída de conteúdo ético.
Tais mudanças não atingem, portanto, apenas a esfera econômica, mas, também, a ideológica e a política, uma vez que o sistema de valores universais abstratos cria uma "nova fábrica de consensos" ativos e passivos que, atuando no âmbito da subjetividade, busca o consentimento e a adesão das classes à nova ideologia.
Romper com essa lógica é uma questão extremamente complexa se pensarmos na debilidade institucional da América Latina e na ausência de uma cultura política, por parte dos atores sociais, capaz de interpelar o Estado e romper com as ações clientelistas e corporativas e o mandonismo político que limitam o processo democrático. Temos, por outro lado, uma democracia ainda débil na garantia de igualdade de condições para o pleno exercício da cidadania. O acesso aos bens públicos, aos serviços essenciais e à Justiça ainda se apresenta de forma desigual e discriminatória. A incapacidade do poder público na garantia de direitos básicos, a impermeabilidade do poder e a baixa credibilidade no Estado fortalecem os sentimentos de impotência política, desamparo social e conformismo, esvaziando as possibilidade de interlocução (Diniz, 1997). Enfim, a Reforma do Estado passa uma ideia artificial de politização e de controle a ser exercido pela sociedade civil, principalmente dos segmentos de classe subalternizados que ainda não tiveram a oportunidade de construir uma cultura política que lhes possibilite intensificar as lutas sociais em favor de uma nova hegemonia.
Qual a opção que nos resta? A opção é centrar todas as forças na reversão desse processo, buscando construir uma reforma do Estado verdadeiramente pública, "intelectual e moral", com intensa participação da sociedade civil, ampliando a sua unidade para além do terreno da institucionalidade e adentrando nas questões da racionalidade econômica e da distribuição da riqueza. Reverter esse processo depende, pois, em grande medida, da capacidade da parcela da sociedade civil em construir uma verdadeira "guerra de posição" articulada em torno das forças populares e de todos aqueles que ainda sonham com uma sociedade melhor. É esse também o desafio que precisamos nos propor, enquanto profissionais que buscam contribuir para a construção de um novo projeto civilizatório.
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Ivete Simionatto é professora titular do Departamento de Serviço Social da UFSC
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