ARTIGO – Pernambuco em estado de medo
RICARDO LIMA *
Após o brutal assassinato do médico, psicanalista e amigo Antonio Carlos Escobar, três sentimentos têm me atormentado dia e noite. São eles: dor, ódio e medo. Tenho absoluta certeza de que todo cidadão de boa-fé, ao ler esse artigo, concordará comigo.
O primeiro é a dor. Sentimento de difícil convivência em qualquer situação. Torna-se necessário lembrar que ela pode se apresentar de diversas maneiras, mas lembremos de duas importantes formas: a dor física e a dor da alma. A primeira geralmente é causada por traumas físicos, tais como cirurgias e acidentes. Pode ser atenuada por potentes drogas analgésicas, ministradas pelos médicos. Entretanto, não é essa a dor a que me refiro. Refiro-me à dor da alma, que geralmente encontra-se relacionada à perda de entes queridos (pais, filhos, parceiros, parentes e amigos). Essa dor, em alguns momentos, é tão forte que somente aqueles que a vivem são capazes de traduzi-la. Por exemplo: essa dor máxima foi expressa na pessoa da esposa e companheira apaixonada do falecido Antonio Carlos Escobar, quando necessitou ser internada em caráter de urgência com risco iminente de vida, durante o momento de seu último adeus ao companheiro. A medicina foi capaz de identificar e tratar tal síndrome, de nome tão difícil para nós (Tako-Tsubo, instrumento para pescar polvo, no Japão), para nós ocidentais “Síndrome do Coração Partido” (não poderia ser tão apropriado). Nessa situação, o organismo é capaz de iniciar um processo de autodestruição aguda do coração, devido ao enorme sofrimento vivido de forma abrupta naquelas últimas horas. O organismo libera substâncias adrenérgicas, em quantidades de até 20 vezes acima dos valores normais, por um longo período de tempo, podendo levar uma pessoa inteiramente normal, mas que vive a profunda dor da alma, à morte. Mas, apesar da dor da alma estar expressa na sua mais perigosa forma, a medicina é capaz de identificá-la e tratá-la convenientemente. Mesmo interrompido o processo de autodestruição, essa gravidade pode ser tratada e a maioria dos pacientes é salva. É claro que a dor da alma persiste por muito tempo, porque não dizer para sempre, sendo o tempo um grande bálsamo.
O segundo é o ódio. Um dos piores sentimentos vividos pelo ser humano. É um sentimento menor, corrói a alma de forma anárquica e torna o homem um ser inferior. Mas tenho de ser sincero e dizer, ao ver os assassinos apreendidos pela polícia, que foi o único sentimento que tive naquele momento. Sem dúvida, como pessoa racional e educada sobre os preceitos da liberdade e dos direitos humanos, logo retornei ao meu normal e passei a entender que esses indivíduos são também vítimas, principalmente, de uma sociedade brutal, cega e com uma enorme desigualdade social. Mais uma vez esse sentimento será resolvido com o tempo e o uso da racionalidade.
O terceiro é o medo. Para mim parece ser o pior de todos. Sim, é o pior porque não sei como tratá-lo. Não sou competente para resolvê-lo. Não tenho como fugir dessa sociedade, onde criei laços profundos, que não saberia viver sem eles. Extremamente difícil, porque fui criado pelos meus pais para ser um cidadão livre, sem medo, respeitador, conhecedor dos meus limites, sabedor do início dos direitos dos demais, com liberdade de ir e vir. O local em que decidi constituir minha família e educar meus filhos me apavora. Para não ter medo, como cidadão me amparo no Estado constituído, acreditando em sua Carta Magna. Mas isso não tem sido possível porque o Brasil faliu no quesito segurança, especialmente Pernambuco. A violência, porque não dizer bandidagem, banalizou-se de tal forma, que poucos são os que ainda não foram agredidos de uma forma ou de outra. Quando saio de casa não sei se voltarei. Tenho o mesmo sentimento para os meus entes mais queridos, meus familiares, meus amigos (acabei de perder um), meus conhecidos ou mesmo qualquer outra simples pessoa. Quando se procura pelo responsável pela segurança do cidadão, não se tem a resposta esperada. Ouve-se simplesmente “a segurança encontra-se sob controle”. Faço uma reflexão sobre mim mesmo e quase chego a concluir: “devo estar histérico, talvez com síndrome do pânico”, ou talvez amanhã com o “coração partido”. Olho para os lados e vejo todos que me cercam apresentar os mesmos sintomas de “histeria (?)” de “síndrome do pânico (?)”, risco de partirem seus corações. Só me resta concluir: as autoridades estão vivendo uma outra realidade, diferente da sua população, a quem se propõe servir. Então me vem a grande questão: como tratar o medo que estou sentindo? Sou obrigado ao terrível questionamento: terei que conviver com o medo para sempre?
Artigo publicado no Jornal do Commércio em 21/01/2005
Ricardo Lima é cirurgião cardiovascular e professor da UPE.