Fim do mundo no cenário da covid-19
Por Antonieta Albuquerque de Souza*
No final do século 20, escreve Anthony Giddens sobre o nosso mundo: “Em vez de estar cada vez mais sob nosso comando, parece um mundo em descontrole”. Isso porque o projeto da modernidade antevia a existência de uma sociedade com características de estabilidade e previsibilidade, na qual os indivíduos estariam imersos em uma imensa máquina social e econômica, cujo combustível continha, entre outros, dois elementos substanciais: os progressos da ciência e da tecnologia. Porém, esse progresso produziu em muitos momentos da história, também, o oposto à segurança da vida coletiva e pessoal. Nessa motricidade, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia exigiu o constante controle dos riscos e das incertezas, que elas mesmas produzem com a intervenção ‘descontrolada’ e abusiva da mãe terra, advindos de causas, muitas vezes, não naturais e que residem em interesses, por vezes extremamente predatórios, que contrariam, inclusive, a justiça e a igualdade sociais.
Em períodos em que se perde esse controle sobre as ações e as práticas, o sentimento de segurança se vê ameaçado e a incerteza e o medo que elas podem trazer, colore o horizonte do futuro. Hoje, o Corona Vírus-19 pode ser um ícone dessa ordem de processo em que, de repente, tem-se a profunda sensação de todo o “mundo em descontrole”. Não obstante, o intenso estado de desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico, de repente parece abrir-se a tela do “fim do mundo”. Não o fim da terra, talvez, mas o final de uma sociedade composta por um modo humano de nela viver uma existência, nem tanto azul.
O propalado “novo normal” requerido para ordenação social na/e após essa pandemia refere-se, sobretudo, a um processo planetário intenso e repetitivo para a normalização e a socialização rápidas, íntima, pessoal e também cidadã, onde se estabelecem regras para condutas e comportamentos baseadas em excessiva disciplina e controle, sobremodo ditadas por códigos do campo das ciências da vida (predominantemente, o médico e epidemiológico), incidindo sobre a condução do corpo e da mente. Essa é a expressão para a radicalização de uma extensa e intensa medicalização social, processo que se acelerou intensamente no século 20, regendo nossas condutas em vários campos institucionais de vida cotidiana (escola, família, amizade, trabalho, entre outros).
Essas ciências desgovernaram-se na missão de garantia ao máximo à vida das pessoas pelo controle da doença, porque “ainda não” existe tratamento garantido para a Covid-19. E, o assombroso e assustador contingente de mortos não velados, nesses meses de pandemia, claramente mostra o tamanho da incerteza da nossa existência. Discursivamente, aquele “ainda não” acena com a promessa de garantia para vencer o mal, e, assim, anunciar alguma estabilidade e previsibilidade do controle da cura e estabelecer limites ao medo inegável dos riscos e perigos existentes, no presente.
Como nenhuma esfera social tem mais autoridade científica no assunto doença-cura, mesmo em estado de descontrole sobre si, o ‘domínio médico e epidemiológico’ prevalecem, inclusive garantindo a força de trabalho para a reprodução social. Porém, desde o início da Covid-19, surge, além das palavras que organizam o “novo normal” (distanciamento social e higiene), a outra face da existência que convoca à sobrevivência pessoal e coletiva. No cenário, evocam-se a garantia do mercado e acumulação do capital e a necropolítica que a instruem. Estamos em “guerra”, uma guerra contraditória, dos agentes dominantes do sistema econômico e da verdade científica, travada entre essa luta pela existência (saúde, vida) e a luta pela sobrevivência (economia). Sob essa visão, sem a sustentação do desenvolvimento econômico competitivo, tem-se a proliferação de elementos estagnantes do progresso essencial à vida coletiva, à iniciativa financeira e empresarial. Nesse cenário, a tecnologia digital dá um salto olímpico à frente, reduzindo custos, acentuando postos de desemprego e precarizando os existentes, fortalecendo o sistema financeiro, entre outros senões que se somam ao medo do presente e a quase ausência de futuro para uma parcela da humanidade.
O que essencialmente está em descontrole é o que se tem atribuído como valor para a vida de muitos, a extrema exclusão e desigualdade dessa sociedade surpreendida em suas profundas contradições por algo invisível. A Covid-19 é em si muito inclusiva quanto aos riscos: não escolhe cor da pele, classe social, sexo, e até mesmo idade (embora haja grupos mais vulneráveis biologicamente). Entretanto, à extrema pobreza, o racismo estrutural, à dominação masculina seculares, a transforma em exemplo darwiniano da sobrevivência do mais apto. Argumento potente para justificar, do ponto de vista da medicalização e patologização da vida e de sistematização da sociedade digital, necessidades de baixa interação social e de expressão de sentimentos e emoções presenciais como estilo de vida, provavelmente, favorável, à revolução tecnológica.
Klaus Schwab, autor do livro A Quarta Revolução Industrial, escreveu um pouco antes da pandemia: “Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos”. Sugeriu ele que os seus efeitos e consequências impactarão no planeta, naquilo que é considerado ético, segurança geopolítica e o modo de sermos. Assim, afetaria o mercado de trabalho, o futuro deste e a desigualdade social. Nesse sentido, chama à reflexão, em tempos de uma pandemia devastadora de vidas, de empregos, de pequenos negócios e de algumas atividades empresariais, a utilidade da normatização planetária, urgente e visceral, desse modelo padrão de “novo normal”. Este, constituído na articulação entre ciência (no caso médicas) e tecnologia, onde convergem tecnologias digitais, físicas e biológicas. Modelo que coloca em suspensão lógicas econômicas industriais, de organização social e de cuidados da saúde, cujo tempo e espaço não regem essa revolução.
Desse modo, o futuro apresenta-se aberto e inseguro para muitas instituições e organizações atuais, e, em consequência, para nós, pessoas e grupos populacionais, que sentimos dificuldades para dimensionar a natureza dos riscos, as incertezas e os perigos iminentes no presente epidêmico e um incerto amanhã pós-epidêmico. De fato, suspeita-se estar experienciando o “fim de um mundo”, no sentido de um deslocamento da relação ciência e tecnologia, na urgência de um cenário regido pelo descontrole pandêmico da Covid-19.
Recife, julho 2020.
* Antonieta Albuquerque de Souza é docente do Curso de Ciências Sociais da Universidade de Pernambuco (UPE)
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Parabéns Professora Antoniêta pela excelente reflexão trazida no texto. Sim estamos vivenciando o final de um mundo, onde neste momento convivemos com diversas incertezas, esquadrinhamento social, regras de higienização, o mercado e seus interesses, nunca mais as minhas aulas de Geografia serão as mesmas.
Boas reflexões