Os “cegos” que acreditam numa Escola sem Crítica
Por: Prof. Ms. Moisés Almeida
Tenho acompanhado recentemente as posturas conservadoras de alguns membros de nossa sociedade, especialmente nesses últimos anos, quando a política partidária tem se misturado com posições religiosas e/ou ideológicas. Custei acreditar que estávamos regredindo aos tempos em que a falta de escolarização não permitia o esclarecimento/entendimento do status quo. Mas é isso mesmo. Em plena segunda década do século XXI a sociedade está produzindo um grupo de pessoas inúteis, idiotas sem qualquer capacidade de interpretação. Como um vírus, essa situação tem se alastrado e contaminado até a geração mais jovem, que se intitula como “direita”, “conservadora” e até mesmo “cristã”. Quem são seus ícones? Pessoas que conseguiram notoriedade atrás dos púlpitos de suas igrejas particulares; pessoas que fazem leitura atrofiada da história; pessoas com formação militar ditatorial e até mesmo pessoas que defendem morais particulares ou ordem de um tempo que não existe mais. Senadores(as), deputados(as) e até “filósofos” fazem parte dessa lista ignóbil. Esse grupo de “notáveis” vem crescendo e fazendo seguidores, podendo até transformá-los em futuras seitas, que utilizarão quaisquer meios para justificar seus fins desejados. Seus argumentos são odiosos, espalhando a discriminação e o preconceito. Dizem-se preparados para o debate e até marcam dia e horário para a querela. Articulam-se pelas redes sociais, compartilham suas ideias esdruxulas e curtem postagens com xingamentos absurdos. Recentemente, depois de várias articulações, conseguiram apresentar ao Senado da República uma proposição que atualmente está em consulta pública. É o Projeto de Lei de número 193/2016 que “inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o programa escola sem partido”. A matéria está sendo avaliada na Comissão de Educação, Cultura e Esporte, tendo como relator o Senador Cristovam Buarque.
Fazendo uma leitura do Projeto de Lei, o Art. 2° inciso VII indica como um dos princípios o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral, que esteja de acordo com as suas próprias convicções. Pergunto: De que forma numa escola plural, os filhos terão educação religiosa e moral dos seus pais, já que somos um país em que convivem diversas convicções religiosas e a moral prevalecente é a jurídica? Já pensou se cada pai tem um entendimento de moral? Qual o consenso que será buscado para que a escola se encaixe? Sobre essa matéria, o Conselho Nacional de Educação, fazendo uma interpretação do Artigo 33 da LDB que garante matricula facultativa nas disciplinas confessionais e interconfessionais, assegura o seguinte: “a oferta do ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, da parte do Estado, e, portanto dos sistemas de ensino e das escolas, cabe-lhes, antes do período letivo, oferecer horário apropriado e acolher as propostas confessionais e interconfessionais das diversas religiões para, respeitado o prazo do artigo 88 da Lei 9.394/96, ser incluída no Projeto Pedagógico da escola e transmitida aos alunos e pais, de forma a assegurar a matrícula facultativa no ensino religioso e optativa segundo a consciência dos alunos ou responsáveis, sem nenhuma forma de indução de obrigatoriedade ou de preferência por uma ou outra religião. Com isso, cremos estar sendo estimulado o respeito à Lei e o exercício da liberdade, e da democracia e da cidadania”. A proposta de Lei obriga praticamente a escola a ir de encontro a diversidade de confissões que temos no Brasil democrático. O Art. 5° define quais são as funções do professor. As funções do professor já estão definidas no artigo 67 da LDB e os sistemas Federal, Estadual e Municipal por sua vez têm as suas diretrizes. Não cabe, em função da proposta de uma suposta “escola sem partido” definir o que pode e que não pode fazer o professor. Sua autonomia já está previamente manifestada nos sistemas citados.
O post_content do Projeto de Lei tem quatorze pontos como justificativa, dos quais, alguns são contraditórios com os próprios artigos da proposição. Uma das justificativas o aduz que “- Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com a liberdade de expressão. Não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa”. Liberdade de ensinar não pode ser confundida com liberdade de expressão, se for assim, a liberdade de expressão não pode ser confundida também com a liberdade religiosa?
O final da justificativa chega a ser hilário quando afirma: “Nesse sentido, o projeto que ora se apresenta está em perfeita sintonia com o art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que prescreve, entre as finalidades da educação, o preparo do educando para o exercício da cidadania” . Mas o que se entende por cidadania? De que forma professores e alunos podem exercê-la? Quais os mecanismos que a escola tem para fortalecer esse princípio? À escola, segundo o que consta nos PCNs, especialmente os referentes ao Ensino Médio deve conter “elementos indispensáveis ao exercício da cidadania e não apenas no sentido político de uma cidadania formal, mas também na perspectiva de uma cidadania social, extensiva às relações de trabalho, dentre outras relações sociais” (BRASIL, 2000, p. 12).Quanto aos docentes os PCNs afirmam: “Para desenvolver sua prática os professores precisam também desenvolver-se como profissionais e como sujeitos críticos na realidade em que estão, isto é, precisam poder situar-se como educadores e como cidadãos, e, como tais, participantes do processo de construção da cidadania, de reconhecimento de seus direitos e deveres, de valorização profissional” (BRASIL, 1998a, p. 31).
Contrariando tudo que já foi discutido, aprovado e sancionado pela maioria da sociedade brasileira, o Art. 7º. do Projeto de Lei Indica que “os professores, os estudantes e os pais ou responsáveis serão informados e educa dos sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que tange aos princípios referidos no art. 1º desta Lei”. Mas quem define os limites éticos e jurídicos da nossa sociedade? Esses limites já estão conformados pela Constituição Federal de 1988, em diversos artigos, e, especialmente nos códigos de processo penal e civil. Impossível numa sociedade democrática aceitar a imposição de um Projeto de Lei que os dogmas religiosos sejam postos como norteadores da ética e da moral.
Salientamos que recentemente, a procuradora Federal dos Direitos Humanos do Cidadão, Deborah Duprat expressou assim sua opinião sobre o Projeto de Lei: “O PL subverte a atual ordem constitucional, por inúmeras razões: confunde a educação escolar com aquela que é fornecida pelos pais, e, com isso, os espaços público e privado. Impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem e contraria o princípio da laicidade do Estado – todos esses direitos previstos na Constituição de 88".
Portanto, não poderia deixar de emitir minha opinião sobre a proposição que generaliza a escola e seus professores, como se todos tivessem a mesma formação e a mesma opinião. Se existe um lugar onde a pluralidade reina, esse locusé a escola. Nela se depositam todas as angústias, esperanças, conflitos e opiniões. Afinal de contas, ela é a imagem da sociedade. E para aqueles que estão acreditando numa escola sem crítica, deixo-lhes a citação de William Shakespeare: “Que época terrível é esta, onde idiotas dirigem cegos?”. Abram os olhos e não deixem que a “remela” da ignorância os ceguem por toda vida.
* Docente Assistente da Universidade de Pernambuco e da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco.