Redução é ledo engano
POR DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR*
Nada pior para a população do que projetar mudanças puramente emocionais e protelatórias. Exemplo é a tentativa de redução da maioridade penal. Só faz adiar as medidas capazes de reverter os altos índices de violência no país. Desvia o foco de discussões causais que a sociedade evita desencadear a qualquer preço.
Resolver o problema da alta criminalidade nacional pela simples prisão de adolescentes a partir dos 16 anos de idade é autoengano criado para iludir a mente nacional. Além de desrespeitar a Constituição, a proposta traz à tona o imediatismo inconsequente da cultura brasileira.
O conceito de delito não pode se limitar à mera caracterização do que é crime, atendo-se a identificar, deter, julgar ou condenar o autor à prisão, tampouco restringir os antecedentes criminais do infrator à lista de transgressões anteriores. Há que punir os responsáveis pelas más condições sociais, cultu rais e econômicas geradoras do comportamento criminoso.
O grande filósofo francês da atualidade, André Compte Sponville, refere-se ao tema com admirável lógica. Deixa claro que o delinquente é culpável pelo crime cometido, não por ser criminoso. Importante é saber quem produz um criminoso. Tal reflexão é repleta de conteúdo. Aplica-se ao conpost_content criminal que envolve, cada vez mais, o ser humano na fase da adolescência. De fato, o perfil de infrator não surge repentinamente. Modela-se nos primeiros tempos de sua existência. Imprime-se na personalidade de um ser em formação, sempre que exposto a carências múltiplas sofridas no ambiente em que é concebido, nasce e cresce. Em turvas águas do estresse crônico nas quais se afoga sua essência humana desde a vida intrauterina, a escassez de estimulação afetiva e a violência de que é vítima a partir do nascimento são incompatíveis com os mecanismos genéticos e epigenéticos que estruturam o cérebro, fundamento da personalidade humana.
O sociólogo Gilberto Freire descreveu as etapas de lapidação do caráter que qualifica os padrões de uma sociedade. Segundo ele, todo filho da espécie Homo sapiens é humano. À medida que cresce em núcleo familiar adequado, converte-se em indivíduo. Ainda criança, inicia estreita interação com outros seres presentes no mesmo ambiente. Se a atmosfera do microuniverso em que transcorre essa fase ontologicamente estruturante ensejar relações acolhedoras e respeitosas, o indivíduo evolui para pessoa. Devidamente reconhecido pelos méritos pessoais, insere-se no conpost_content da maturidade graças à incorporação de valores éticos, morais e comportamentais. Torna-se cidadão.
Essa evolução prima pelo acesso da criança e do adolescente aos componentes requeridos para crescimento e desenvolvimento plenos a que têm direito. Recursos nutricionais saudáveis, fonte de afeto, estimulação lúdica, educação de qualidade, cenário familiar carinhoso e equilibrado, além de condutas parentais exemplares, são o alicerce para a construção dos seres humanos esquivos à agressividade, avessos à violência. Quando tais requisitos não lhes forem assegurados pelo núcleo social em que vivem, a metamorfose perderá rumo. Incursionará pelos desvios de rota que levam a desfechos desfavoráveis à vida em sociedade.
Pesquisas clássicas de Bowlby demonstram que crianças vítimas de privação materna na infância rotina no mundo atual têm maior probabilidade de comportamentos futuros marcados pela incapacidade de lidar com o afeto, tanto para dar quanto para receber. Tendem a práticas que culminam em infrações, delinquências e crimes.
Menores em conflito com a lei não nasceram infratores. Foi a sociedade que os condenou a viver sem opção de dignidade, negou-lhes direitos fundamentais, retirou-lhes a chance de escolhas diferentes. O eco nomista James Heckman mostrou que episódios de detenção de jovens delituosos são bem mais frequentes entre aqueles cuja infância careceu dos cuidados qualificados em saúde e educação.
A luta para reduzir a maioridade penal atesta descompromisso dos adultos como provedores das condições de vida necessárias à metamorfose da infância e da adolescência. Afirmar que o adolescente é penalmente maduro só faz sentido caso a alegada maturidade vá além do campo penal. Se já amadureceu para ser preso como adulto, não há porque lhe negar o direito de ser votado, exercer mandato nos poderes Executivo e Legislativo, desempenhar funções no Judiciário. Do contrário, seria declará-lo maduro para a responsabilidade penal e imaturo para tudo o mais. Uma decisão injusta e incoerente. Um ledo engano.
Publicado no Correio Brasiliense – Opinião – Publicação: 05/05/2013 04:00
* Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium